84 DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO | SÉRIE 3 | ANO XV Nº017 | FORTALEZA, 24 DE JANEIRO DE 2023 um mandado expresso de criminalização dessa prática. É conduta equiparada a hediondo (pois, recebe o mesmo tratamento). Dessa forma, o legislador constituinte definiu a necessidade de dar tratamento mais rígido a esse tipo de comportamento; CONSIDERANDO, na mesma esteira, o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF): “[…] a tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete – enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva – um aceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo.” (HC 70389); CONSIDERANDO que o Estado Brasileiro é signatário de tratados internacionais que tratam do tema, por meio dos quais se obrigou perante a comunidade internacional a reprimir os crimes de tortura. Um desses instrumentos é a Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes, promulgado pelo Decreto n.º 40, de 15 de fevereiro de 1991, que conceitua o termo “tortura” em seu artigo 1º, 1; CONSIDERANDO que a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, promulgada pelo Decreto n.º 98.386, de 9 de dezembro de 1989, definiu em seu Art. 2º o conceito de “tortura” para fins de aplicação do instrumento normativo; CONSIDERANDO, no plano normativo interno, o caso em rela se amolda ao disposto na Lei Federal n.º 9.455/1997, que definiu os crimes de tortura, especificamente ao teor do Art. 1º, inc. I , alínea “a” e §§ 2º e 4º, inc. I; CONSIDERANDO que, com efeito, a definição exarada no Art. 1º, inc. I, alínea “a”, da Lei n.º 9.455/1997 trata da denominada “tortura probatória”, ou seja, aquela conduta cujo o fim é a obtenção de informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa. Sob essa perspectiva, a norma protege o bem jurídico da incolumidade física da pessoa em sentido amplo, a saber, a integridade corporal, mental e a saúde. Além disso, resguarda a tutela de garantias constitucionais e legais das pessoas em geral frente aos arbítrios cometidos por funcionários públicos e/ou por particulares. Nessa esteira, é evidente a adequação da conduta descrita nos autos às normas em comento. Noutro sentido, o Art. 1º, § 2º, ao dispor que: “Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a 4 anos”, revela a figura da deno- minada “tortura-omissão ou tortura-imprópria”; CONSIDERANDO que, na participação por omissão, o omitente, tendo o dever jurídico de evitar o resultado, enquanto na condição de garante, concorre para ele, ao quedar-se inerte, enquanto os autores diretos realizam a conduta comissiva. Assim, no caso vertente, o SD PM João Victor Machado Firmino assistiu às cenas de agressão, sem nada fazer, anuindo, de certa forma, na concretização dos atos, permanecendo inerte, aderindo com sua conduta omissa às ações do Cb PM Luiz Gonzaga Feitosa do Carmo e do Sd PM Paulo Régis de Oliveira, que realizavam a ação principal, devendo, portanto, ser responsabilizado pela passividade, na medida de sua culpabilidade. O SD PM Francisco Jales Renovato Júnior, apesar de não ter presenciado diretamente os acontecimentos, tinha ciência do que ocorria e nada fez para cessar as agressões. Assim sendo, ambos se omitiram dos deveres legais inerentes aos cargos públicos que ocupavam de coibir a prática de tal crime. Assim, realizaram condutas que correspondem às hipóteses tipificadas no Art. 1º, § 2º, da Lei n.º 9.455/97 (omissão perante a tortura); CONSIDERANDO que a prova material das agressões sofridas pela vítima A. G. C. L. está assentada nos depoimentos testemunhais e no laudo do exame de corpo de delito de lesões corporais. Portanto, como se vê, não há como negar a existência consistente da autoria e provas robustas da materialidade das transgressões; CONSIDERANDO o que dispõe o Art. 29, do CPM: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”; CONSIDERANDO que a doutrina tem definido o concurso de agentes como a reunião de duas ou mais pessoas, de forma consciente e voluntária, concorrendo ou colaborando para o cometimento de certa infração penal; CONSIDERANDO que os atos praticados pelos militares estaduais convergem para transgressões disciplinares de natureza grave, de forma que o manancial probatório acostado aos autos confere convencimento de que tais faltas funcionais ocorreram e que seus autores foram os militares em epígrafe; CONSIDERANDO, isto posto, que, de modo a exaurir a cognição e justificar a punição expulsória em face dos militares estaduais Cb PM Luiz Gonzaga Feitosa do Carmo e do Sd PM Paulo Régis de Oliveira, e a sanção diversa da demissão em relação aos policiais SD PM João Victor Machado Firmino e SD PM Francisco Jales Renovato Júnior, é pertinente pontuar que o poder disciplinar busca, como finalidade fundamental, velar pela regularidade do serviço público, aplicando, para tanto, medidas sancionatórias aptas a atingir tal desiderato, respeitando-se sempre o princípio da proporcionalidade e seus corolários (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito); CONSIDERANDO que se faz importante observar que, no delito de tortura, há o preceito primário referente ao intenso sofrimento físico ou mental, sendo que este último pode dar-se das mais variadas formas, v.g., mediante ameaças, etc. Logo, afigura-se dispensável a prática de agressões física e/ou a presença de lesões corporais graves para a caracterização do delito; CONSIDERANDO que os aconselhados questionaram a gravidade das lesões para alegar não ter havido a tortura, porém há precedente judicial entendendo que o ato de forçar a prática de sexo oral também configura tortura (Acórdão 20098048 do Tribunal de Justiça de Sergipe); CONSIDERANDO que os Tratados Internacionais sobre o tema e também a Lei n.º 9.455/1997 enunciam que as práticas de tortura não são esgotadas nessas legislações, devendo o julgador, ao apreciar os casos concretos, aferir se a violência praticada, seja ela qual for, se enquadra, ou não, no tipo penal da tortura. Assim é que a produção de provas para apuração do crime da tortura pode ter a forma de um relatório médico, uma avaliação psicológica, declaração da vítima, declarações de testemunhas, gravações, outros tipos de prova de terceiros (como o testemunho de um médico ou de outro especialista), ou uma prova objetiva de incidentes generalizados de tortura nas circunstâncias referidas. Em resumo, pode ser qualquer material que possa ajudar a corroborar e demonstrar uma denúncia (GIFFARD, Camile. Manual de denúncia da tortura: como documentar e apresentar denúncias de tortura no âmbito do sistema internacional para a proteção dos direitos humanos. Reino Unido: Universidade de Essex, 2000. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/dados/manuais/a_pdf/manual_tortura_giffard.pdf. Acesso em: 24 nov. 2022. p. 59); CONSIDERANDO que, muitas vezes os ferimentos e lesões desaparecem até a data da realização da perícia e ensejam a realização de exame indireto de corpo de delito. Outras tantas, atos violentos, apesar de caracterizarem tortura, são desferidos, propositadamente, de maneira a não deixarem vestígios ou apenas leves escoriações na pele da vítima (GOULART, Valéria Diez Scarance Fernandes. Tortura e prova no processo penal. Dissertação de Mestrado em Direito. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001. p. 99 e 101). Deste modo, não se pode admitir que tais crimes sejam menos graves do que aqueles que deixam marcas físicas e visíveis nos corpos, posto que, à sua maneira, também deixam marcas e cicatrizes nas vítimas; CONSIDERANDO que, quanto aos sistemas de avaliação da prova, o ordenamento jurídico brasileiro adotou, como regra, o sistema do livre convencimento motivado, segundo o qual o magistrado tem ampla liberdade para valorar as provas dos autos (que legal e abstratamente têm todas o mesmo valor), mas, por outro lado, tem o dever de fundamentar sua decisão – com base nas provas coligidas aos autos (Art. 93, IX, da CF/88). Assim é que o depoimento do ofendido, um dos meios de prova previstos pelo CPP (art. 201), também deverá ser livremente valorado pelo julgador, quando da prolação da decisão; CONSIDERANDO que, na maioria das vezes, a tortura, por ocorrer em locais ocultos, é cometida sem a presença de outros observadores ou testemunhas do ato. Assim, normalmente, a única pessoa apta a descrever os tormentos e sofrimentos é a própria vítima – já que o perpetrador dificilmente se disporá a fazê-lo (GOULART, 2001, p. 115). Uma peculiaridade que envolve o crime de tortura é o seu local de cometimento, já que, “normalmente, a sessão de suplícios é feita em locais fechados” (Goulart, 2001, p. 4), o que dificulta sua publicidade e, consequentemente, posterior comprovação; CONSIDERANDO que se colhe dos autos que as agres- sões físicas ocorreram com emprego de violência, consistente em asfixia com uso de saco plástico na cabeça e na boca (método conhecido como “submarino seco”), dificultando com isto a respiração da vítima, além de afogamento simulado com a submersão em um balde com água (prática conhecida vulgarmente por “submarino molhado” ou “waterboarding”), causando-lhe sofrimento físico e mental, assim a torturando, com o fim de obter informações acerca do suposto paradeiro de um indivíduo alcunhado de “Bucho”, possivelmente envolvido no tráfico de entorpecentes local (fls. 09/10; fls. 16; fls. 73/74 fls. 76/77; fls. 104/105; fls. 480/481); CONSIDERANDO que, diante do exposto, o comportamento dos aconselhados revelou obtuso desprezo ao sofrimento alheio (ser humano), conduta esta a ser repreendida no seio da Corporação Policial Militar, traduzindo qualquer conivência nesse sentido uma verdadeira autodes- truição institucional. Desta forma, a ação dos militares deve ser vista como grave violação à dignidade da pessoa humana e à cidadania (fundamentos da República Federativa do Brasil, Art. 1º, da CF/88), posto que nenhum cidadão pode ser submetido a tratamento desumano ou degradante. Nessa vertente, a violência fardada distorce o conceito de ética e moral, e ainda alimenta um sentimento de descontrole e insegurança à sociedade; CONSIDERANDO que, diante desse quadro fático, há de se analisar as condutas do SD PM João Victor Machado Firmino e do SD PM Francisco Jales Renovato Júnior, sobre duas vertentes: a primeira, em face do tratamento jurídico dispensado aos comportamentos omissivos (autônomos) perante a norma que trata do caso praticado, assim como diante do contexto fático e das peculiaridades que o caso requer; CONSIDERANDO que, nesse diapasão, embora digna de reprovação, a conjun- tura de inação dos 02 (dois) aconselhados deve ser analisada no caso concreto, pois a própria Lei nº 9.455/1997 proporciona tratamento diferenciado (privi- legiado) ao servidor que comete a falta na modalidade omissiva em relação ao agente que a efetua nas demais modalidades, impondo-lhe pena menor, senão vejamos: “§ 2º, do art. 1º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos” (grifou-se). Nessa perspectiva, a tortura por omissão refere-se à inércia, ou seja, o não agir por parte de quem esteja obrigado por ofício de intervir, porém, ao contrário, mantém-se parado/complacente quando deveria evitar a prática criminosa. Dessa forma, a figura privilegiada visa a incriminar com sanção bem menos rigorosa (reprimenda leve, diferenciada) aquele que, podendo e devendo repeli-la, abstém-se de evitar a sua prática ou, não sendo possível evitá-la, deixa de adotar as medidas cabíveis. Assim sendo, a CF/88 expressamente determina a punição do agente que, por omissão, contribui para o delito em questão (art. 5º, XLIII), ao reprimir a conduta, o legislador infraconstitucional imprimiu um tratamento mais benéfico; CONSIDERANDO, no caso sob apreço, que a omissão do SD PM João Victor Machado Firmino e do SD PM Francisco Jales Renovato Júnior tutela, precipuamente, a moral admi- nistrativa, já a infração propriamente dita, perpetrada pelo CB PM Luiz Gonzaga Feitosa do Carmo e pelo SD PM Paulo Régis de Oliveira, afrontou a dignidade humana como bem jurídico principal; CONSIDERANDO que a conduta compreendida como omissiva não é sequer equiparada a hedionda, inclusive no âmbito criminal, permitindo o pagamento de fiança. Além disso, o regime inicial de pena não é o fechado, a pena é a metade da equivalente à infração verificada nas demais modalidades e o sistema de punição é por meio do instituto da detenção. Nessa esteira, haja vista a condição diferenciada dada aos agentes que, de forma omissiva, praticarem o delito de tortura, a própria Lei nº 9.455/97 fugiu à regra da teoria unitária, tendo adotado como exceção a teoria pluralística, segundo a qual cada partícipe responde por um delito diferente. Nesse caso, aquele que, podendo evitar a prática da conduta delitiva, a ela assiste passivamente, cooperando com a execução dos atos, mediante omissão, não responderá pelo mesmo crime cometido pelos autores principais, como determina o Art. 29, caput, do CP (teoria unitária ou monista), mas pela forma prevista no Art. 1º, § 2º, da mesma Lei, ou seja, pela conduta autônoma. Portanto, o legislador quis dar um tratamento mais brando (diferenciado) ao agente que incorre neste delito, na modalidade omissiva, considerando-o, assim, conduta de menor gravidade. Na mesma senda, desconsiderou-se também o disposto no Art. 13, § 2º, do CP, que estabelece regras atinentes à omissão doFechar